ITCMD na integralização de bens no capital social: como assim?!
Por mais estranho que possa parecer, o Fisco do Estado de São Paulo se manifestou assim recentemente.
O ITCMD é o imposto do momento
Se você acompanha nosso blog, já deve ter percebido que, atualmente, muito tem se falado a respeito do ITCMD, o “imposto sobre a herança’.
Não sem razão.
A tão discutida reforma tributária tem em mira esse imposto, dado que permeia no imaginário popular que só paga esse tributo quem é “rico”, detentor de vasto patrimônio. Assim, é mais fácil aumentar a alíquota desse tributo do que de tributos que incidem sobre o consumo, por exemplo, dado que esses atingem indistintamente a todos, e é sentido de imediato.
Mas esse é um engano.
Eventual aumento na alíquota do ITCMD repercutirá em todos aqueles que um dia irão receber alguma herança, mesmo que seja um imóvel apenas.
Pois bem.
Enquanto não se concretiza a reforma tributária, os Fiscos estaduais vêm procurando, mesmo que por vias questionáveis, aumentar a arrecadação desse tributo
Vamos entender isso nos próximos tópicos.
A realização de capital social por meio de bens imóveis
Já dissemos aqui, inúmeras vezes, que o capital social de uma pessoa jurídica pode ser realizado com bens imóveis.
Em outros termos, isso quer dizer que, em vez de você colocar dinheiro em espécie dentro da empresa, você pode “entregar” um bem imóvel.
Essa operação, segundo a Constituição Federal, é imune. Ou seja, sobre ela não incide o ITBI, que é imposto municipal.
Porém, em alguns planejamentos sucessórios, o Fisco do Estado de São Paulo está enxergando, nessa operação (integralização de bens no capital social de pessoa jurídica), uma verdadeira doação entres os sócios, o que faria incidir não o ITBI, mas o ITCMD.
Vamos ver em que hipótese o Estado de São Paulo está entendendo desta forma, transcrevendo a Consulta Tributária 22070/2020.
A Consulta Tributária 22070/2020 do Estado de São Paulo
Relato
- A Consulente, pessoa jurídica, informa que tem sua atividade vinculada ao código 64.62-0/00 (“holdings de instituições não financeiras”) da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) e apresenta dúvida relacionada à necessidade de recolhimento do ITCMD em relação às transferências de imóveis para integralização do capital social de sociedade limitada, considerando que recebeu de Oficial de Registro de Imóveis nota de devolução sobre exigência do pagamento do imposto.
- Informa que as transferências efetuadas ocorreram do patrimônio dos sócios, todos irmãos, para integralização do capital social da empresa, que não tem sua atividade preponderante relacionada à venda ou locação de propriedade imobiliária ou à cessão de direitos relativos à sua aquisição.
- Menciona os artigos 35 a 37 do Código Tributário Nacional, artigos 2º, 7º, 15 a 18 da Lei Estadual 10.705/2000, artigo 156 da Constituição Federal e artigo 538 do Código Civil, além de precedentes jurisprudenciais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para alegar que, em seu entendimento, a transferência de propriedade de imóveis de pessoa natural, para integralização de capital social de pessoa jurídica, não se enquadra nas hipóteses de incidência previstas para o ITCMD ou o ITBI, inclusive em relação a eventual diferença entre valor de quotas com o valor correspondente aos imóveis utilizados para transferência.
- Diante do exposto, questiona se é possível o registro do título de imóveis sem a exigência do recolhimento do ITCMD.
Interpretação
- Inicialmente, registre-se que não é possível conhecer a integralidade da situação de fato que originou a dúvida, pois a Consulente não informa elementos essenciais para a compreensão do caso concreto a ser analisado, como a distribuição das quotas do capital social entre os sócios e os valores dos imóveis a serem transferidos para integralização do capital social. Dessa forma, essa consulta será respondida somente em tese.
- Isso posto, cumpre esclarecer que, a princípio, a transferência de imóveis do patrimônio dos sócios para a sociedade limitada para integralização do capital social da empresa não é hipótese de incidência prevista na legislação do ITCMD.
- Contudo, ressalta-se que, na hipótese de integralização de capital acima do valor que cabe a cada sócio, sem o correspondente reflexo em sua participação na sociedade, esta Consultoria Tributária entende que pode haver doação de bens ou direitos, portanto sujeita à incidência do ITCMD.
- Para melhor explicar esse último item, passamos a um exemplo:
8.1. Dois senhores, A e B, proprietários de um imóvel (na proporção de 50% cada um), com valor de mercado de R$ 500.000,00 e valor histórico (constante das declarações de Imposto sobre a Renda) de R$ 200.000,00 resolvem, juntamente com um terceiro, C, constituir uma sociedade limitada. Para tanto, estabelecem no contrato social que o capital da empresa, formado por 300 mil quotas (com valor de R$ 1,00 cada quota) será realizado mediante a integralização do referido imóvel, por parte dos dois senhores, A e B, e por R$ 100.000,00 em dinheiro integralizado por C. As quotas serão divididas da seguinte maneira: 100 mil quotas para cada sócio.
8.2. Pode-se perceber, nesse caso, que:
8.2.1. Houve integralização do imóvel pelo valor histórico (permitida pelo artigo 23 da Lei 9.249/1995).
8.2.2. O valor (de mercado) das quotas resultantes da incorporação do imóvel ao capital social não é igual ao valor de mercado do imóvel integralizado. A empresa, que não tem nenhum passivo, possui como ativos um imóvel de valor R$ 500.000,00 e R$ 100.000,00 em dinheiro, somando R$ 600.000,00 de valor de mercado. As quotas sociais pertencentes aos senhores A e B estão registradas por R$ 200.000,00, no entanto, possuem valor de mercado de R$ 400.000,00.
8.2.3. O terceiro C, que integralizou o valor de R$ 100.000,00 em dinheiro, passou a ser proprietário de quotas sociais registradas pelo valor de R$ 100.000,00, mas que possuem valor de mercado de R$ 200.000,00.
8.3. Os senhores A e B possuíam um patrimônio de R$ 250.000,00 cada um (metade do imóvel que possuía valor de mercado de R$ 500.000,00) e com a constituição da empresa, nos termos estabelecidos, passaram a ter um patrimônio de R$ 200.000,00 cada um, representado por 100.000 quotas do capital social da empresa. As 100.000 quotas, conforme indicamos, estão registradas por R$ 100.000,00 reais, mas possuem valor de mercado de R$ 200.000,00 (33,33% do valor total de mercado da empresa, que é de R$ 600.000,00). É evidente que ambos sofreram um prejuízo patrimonial da ordem de R$ 50.000,00 cada um.
8.4. O terceiro C, por outro lado, sofreu um acréscimo patrimonial de R$ 100.000,00, uma vez que integralizou o valor de R$ 100.000,00 em dinheiro para a constituição da empresa e passou a ser titular de 100.000 quotas do capital social que, conforme indicamos, possuem valor de mercado de R$ 200.000,00.
8.5. No presente caso é possível se vislumbrar todos os elementos que caracterizam a doação, quais sejam:
8.5.1. Natureza contratual (existe um contrato social para constituição da entidade, que modifica direitos patrimoniais dos contratantes).
8.5.2. Aceitação (todos assinam o contrato de comum acordo).
8.5.3. Transferência patrimonial (os sócios A e B sofrem prejuízo patrimonial de R$ 50.000,00 cada um ao passo em que o sócio C tem um acréscimo patrimonial de R$100.000,00).
8.5.4. Animus donandi (os sócios têm a faculdade de integralizar o imóvel pelo valor de mercado ou pelo valor histórico. Optando pelo valor histórico sem exigir quaisquer contrapartidas que compensem seu prejuízo patrimonial estarão praticando um ato de liberalidade).
8.5.5. Se fizerem pelo valor histórico e receberem uma compensação financeira de R$ 50.000,00 cada um, do terceiro C, não há que se falar em doação, visto não ter havido nem prejuízo patrimonial, nem liberalidade. Se fizerem a integralização pelo valor de mercado, por sua vez, não haverá prejuízo patrimonial.
- Nota-se, assim, que, sem o correspondente reflexo nas quotas do sócio integralizador, o valor do imóvel que ultrapassa o valor pelo qual ele é integralizado acaba por se configurar como uma transferência voluntária (doação) do patrimônio dos sócios integralizadores para o outro sócio, caracterizando-se, portanto, como hipótese de incidência do ITCMD.
- Com efeito, não se pode perder de vista a possibilidade da utilização do instituto da integralização de capital social e da doação (regulados pelo direito civil e empresarial), para ocultar ou simular negócios jurídicos com objetivo de se esquivar do pagamento de tributos. Nessa situação, de acordo com o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, a autoridade fiscal está autorizada a desconsiderar os atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Consequentemente, quando verificada na situação concreta a utilização formal de atos e negócios jurídicos estruturados desprovidos de essência negocial ou ainda, eivados de vícios para encobrir materialmente outros, de natureza diversa, para, assim, suprimir o real fato gerador da obrigação tributária, então, esses negócios poderão ser desconsiderados pela autoridade administrativa, para que haja a autuação de acordo com o fato gerador materialmente praticado.
- Ressaltamos que, em que pese este órgão consultivo, vinculado à Coordenadoria da Administração Tributária, ser parte integrante do sistema de fiscalização tributária da Secretaria da Fazenda e Planejamento, destaca-se que o instituto da consulta se apresenta como meio impróprio para confirmação da necessidade de pagamento do ITCMD, principalmente quando faltam elementos essenciais para determinação do caso concreto, devendo a Consulente, em caso de dúvida, buscar orientação no Posto Fiscal a esse respeito, apresentando a situação de fato e os documentos pertinentes, com todas as informações necessárias para que o caso concreto seja analisado.
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Nosso entendimento sobre o assunto
Na nossa opinião, o entendimento do fisco é equivocado, dado que parte da premissa que o contribuinte age deliberadamente em fraude ao fisco. O art. 116 do CTN, em seu parágrafo único, utilizado pelo fisco na fundamentação da consulta, só pode ser utilizado quando atos ou negócios jurídicos forem praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Em outros termos, é quando os atos do contribuinte não merecerem fé. Não pode o fisco tomar como verdade que todos os contribuintes agem de má-fé, salvo prova em contrário. Como se sabe, o dolo é a conjunção da consciência com a vontade.
Ao que parece, inverte-se a premissa de que ao fisco cabe provar que o particular agiu com dolo, e não o contrário. Isso que o contribuinte agiu nos estritos termos da lei!
Mas não é só.
O Código Civil permite que haja, entre os sócios, distribuição desproporcional de lucros. Ou seja, mesmo que cada sócio detenha 1/3 de participação societária, a distribuição dos lucros não precisa seguir essa proporção.
Ora, se, no caso utilizado pelo Fisco como exemplo, os sócios que integralizaram o bem imóvel ficassem com todo o valor de eventual venda do bem imóvel, todo o raciocínio da fazenda estadual cai por terra.
É preciso estarmos atentos e vigilantes com as posturas adotadas pelos fiscos, principalmente em tempos de pandemia e queda brusca na arrecadação. Isso porque temos verificado que uma operação que, até bem pouco tempo atrás, era imune (por força constitucional!) tem sido gravada ora com ITBI ora ITCMD, o que é um completo absurdo!
Em alguns casos, ao que parece, as fazendas estaduais agem com base no raciocínio de que “se passar, passou”.
Portanto, se você fez uma operação de integralização de bens no capital social de uma pessoa jurídica e, agora, está sendo exigido de você o pagamento do ITCMD por parte dos cartórios de registro de imóveis para que a transferência seja concretizada, saiba que há bons argumentos para que essa exigência seja afastada pelo Poder Judiciário.
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Jonadson
05/11/2021 @ 12:38
Excelente interpretação. O assunto é bastante relevante e gera muitas dúvidas por existirem diversos posicionamentos, principalmente à nós, classe de contadores.
Maruan Tarbine
05/11/2021 @ 12:42
Obrigado!
Ficamos à disposição
Rafael Resende
26/01/2022 @ 16:21
Embora (sempre) cada caso deva ser analisado em seus pormenores, a interpretação do Fisco é correta. A utilização de HOLDINGS para a evasão/elisão fiscal (doação) vem sendo largamente utilizada.
Senão vejamos os comentários do Sr. Maruan, “ora, se os sócios que integralizaram o bem imóvel ficassem com todo o valor…” é uma hipótese impraticável, vez que, ao integralizar o imóvel ao capital da empresa, este mesmo imóvel passa a pertencer à empresa, sendo esta a legítima proprietária do bem. Portanto, o fruto da venda da empresa, ou de bens da empresa, passam à própria empresa.
Ocorre que vivemos no Brasil, e o Brasil é o que é…
Maruan Tarbine
26/01/2022 @ 18:46
Boa tarde Rafael, tudo bem?
Veja só, nesse caso pode haver a distribuição desproporcional dos lucros e, nessa hipótese, o lucro da venda ser remetido apenas àqueles que integralizaram o bem.
É claro que as holdings podem ser utilizadas para o bem e para o “mal”. Mas o ônus de comprovar essa utilização à margem da lei é do Fisco, que deve avaliá-la em cada caso concreto, e não em tese.
Obrigado pela sua contribuição