Sua empresa distribui lucros? Fique atento!
Alguns estados querem tributar pelo ITCMD a distribuição de lucros desproporcional
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A distribuição de lucros dentro de uma sociedade
Dentro do direito privado prevalece o que chamamos de autonomia da vontade.
É aquele velho ditado que aprendemos ainda nos bancos da faculdade: ao particular é permitido tudo aquilo que não é proibido.
Em regra, a distribuição de lucros dentro de uma sociedade se faz à luz da participação societária de cada sócio. Ou seja, havendo dois sócios, cada um tendo 50% da sociedade, os lucros serão distribuídos nessa mesma proporção.
Porém, como dito antes, em vista da autonomia da vontade, as partes podem deliberar de outra forma. Assim, a distribuição será proporcional apenas nos casos de não haver acordo das partes em sentido contrário.
Isso está expressamente previsto no art. 1.007 do Código Civil, que transcrevemos abaixo:
Art. 1.007. Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas.
Repare na permissão para as partes negociarem outra forma de distribuição dos lucros (“salvo estipulação em contrário”).
Portanto, Pedro e José podem ser sócios em uma sociedade limitada, cada qual com 50% de participação societária, porém, podem convencionar que Pedro ficará com 70% dos lucros, ao passo que José ficará com 30%.
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A incidência de ITCMD sobre a distribuição desproporcional dos lucros
Na última semana, fui surpreendido com a informação de alguns fiscos estaduais estão querendo tributar pelo imposto de doação essa distribuição desproporcional de lucros.
É como se, no caso acima, José estivesse doando 20% dos seu lucros a Pedro, cabendo, então, a incidência de ITCMD sobre esses 20%.
Esse entendimento é absurdo e demonstra que o Fisco age, em muitos casos, escorado no “se passar, passou”.
As hipóteses de incidência tributária não podem ser alargadas por mera analogia, sob pena de se ferir todo um sistema pensado com base na legalidade estrita.
O equívoco dessa interpretação, por incrível que pareça, foi bem demonstrado pelo fisco do estado de São Paulo, que na resposta à consulta tributária 20952M1/2019 assim se manifestou:
EMENTA
ITCMD – Distribuição desproporcional de lucros em relação ao percentual de quotas do capital social da sociedade limitada que cada um dos sócios possui – MODIFICAÇÃO DE RESPOSTA.
I. O artigo 1.007 do Código Civil possibilita aos sócios definirem outra forma de participação nos resultados da sociedade limitada que não a proporcional ao percentual de quotas do capital que cada um detenha.
II. O instituto da distribuição desproporcional de lucros não se confunde com doação, na medida em que não há ânimo de liberalidade na transferência patrimonial. Sendo regular a distribuição desproporcional de lucros, ela estará devidamente justificada em razões de cunho negocial.
III. A regular distribuição desproporcional de lucros não enseja a incidência do imposto sobre transmissão por doação.
Relato
- A presente consulta, formulada por entidade representativa dos contabilistas e empresas contábeis, encontra-se assim estruturada:
“I. Da hipótese.
Associados da consulente, interessados em criar sociedades empresárias limitadas com capital integralizado em proporções diferentes – como, por exemplo, 90% para um sócio e 10% para o outro – inserem no ato constitutivo cláusula específica prevendo que divisão dos lucros será feita desproporcionalmente à participação de cada sócio. Esse acordo intersócios, feito com amparo no artigo 1.007, do Código Civil, prevê de que os cotistas participarão dos lucros e das perdas em partes iguais, tocando 50% para cada um, independentemente da citada proporção no capital social.
II. Da dúvida que enseja a consulta.
As dúvidas que animam esta entidade a se dirigir a essa D. Consultoria para que seus associados possam interpretar e cumprir a legislação tributária corretamente são as seguintes:
(i) diante da prévia estipulação em cláusula contratual permitindo distribuição desproporcional dos lucros, com precisa indicação de que o sócio minoritário, titular de 10% do capital, receberá 50% dos lucros, haveria incidência de ITCMD, sobre essa diferença, a cada distribuição?
(ii) se o contrato social fizer a previsão da distribuição desproporcional dos lucros, mas relegar para futura deliberação dos sócios a definição do percentual que caberá a cada um, haveria incidência de ITCMD sobre a diferença entre o percentual da participação nas cotas e o percentual dos lucros recebidos a cada distribuição?
III. Consulta.
O Consulente requer sejam examinadas as hipóteses acima suscitadas, com esclarecimentos adicionais que, a critério dessa Consultoria, possam ser expostos para correta interpretação da legislação tributária. A dúvida, como visto, é fundada especialmente diante do artigo 3°, da Lei Estadual 10.705/2000, que assim dispõe:
‘Artigo 3º – Também sujeita-se ao imposto a transmissão de:
I – qualquer título ou direito representativo do patrimônio ou capital de sociedade e companhia, tais como ação, quota, quinhão, participação civil ou comercial, nacional ou estrangeira, bem como, direito societário, debênture, dividendo e crédito de qualquer natureza’.
A distribuição desproporcional cogitada nas duas hipóteses acima descritas estaria compreendida na previsão do artigo 3° mencionado?”
Interpretação
- De início, convém delimitar o campo de incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD):
2.1. A Lei 10.705/2000, que instituiu o ITCMD, em conformidade com o disposto no artigo 155, inciso I, da Constituição Federal, ao se referir às transmissões inter vivos, dispõe que o imposto incide sobre aquelas decorrentes de doação de quaisquer bens e direitos.
2.2. Assim sendo, a sujeição ao ITCMD, no caso em análise, dependerá, necessariamente, da possibilidade de estar caracterizada a hipótese de doação.
- A doação, vocábulo que se deriva dos termos latinos donatio e donare que significa “dar”, “brindar” ou “presentear”, é um ato de liberalidade pelo qual o doador transfere algo de seu patrimônio, subtraindo-o, em favor do donatário que, consequentemente, tem seu patrimônio aumentado (artigo 538 do Código Civil).
3.1. De acordo com Silvio de Salvo Venosa “no contrato de doação, destacam-se claramente dois elementos constitutivos: objetivo e subjetivo. Elemento subjetivo é a manifestação de vontade de efetuar liberalidade, o animus donandi. Elemento objetivo é a diminuição de patrimônio do doador que se agrega ao ânimo de doar” (in Direito Civil – 4ª ed. – São Paulo: Atlas, 2004. – página 117).
3.2. No mesmo sentido, Maria Helena Diniz esclarece que é elemento fundamental que caracteriza a doação “o ânimo do doador de fazer uma liberalidade (animus donandi), proporcionando ao donatário certa vantagem à custa do seu patrimônio. O ato do doador deverá revestir-se de espontaneidade” (in Curso de Direito Civil Brasileiro – 19ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2003 – páginas 221 e 222).
- Por outro lado, assim estabelecem os artigos 981, 1.007 e 1.008 do Código Civil, que tratam da sociedade empresária de responsabilidade limitada:
“Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.
Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados.”
“Art. 1.007. Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas.”
“Art. 1.008. É nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas.”
“Art. 1.010. Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um.
(…)”
4.1. Como se pode ver, o artigo 981 determina tanto a obrigação dos sócios em contribuir, com bens ou serviços, para o exercício da atividade econômica de sua empresa como a partilha, entre eles, dos resultados por ela apresentados; sendo nula a estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas (artigo 1.008).
4.2. Já o artigo 1.007 firma, como regra geral, que a participação dos sócios nos resultados da empresa será proporcional ao percentual de quotas do capital social que cada um deles possua. No entanto, por meio da frase inicial “salvo estipulação em contrário”, esse dispositivo permite a distribuição desproporcional dos resultados da empresa, uma vez que possibilita aos sócios definirem outra forma de participação que não a proporcional ao percentual de quotas do capital que cada um detenha.
4.3. Sobre a questão, Fábio Ulhoa Coelho (in Curso de Direito Comercial. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.29) manifestou-se da seguinte forma:
“A nulidade existe na exclusão de sócio dos lucros da sociedade mas não na participação desproporcionada. Assim, em qualquer limitada pode-se licitamente contratar a incorrespondência entre os percentuais referentes à participação no capital social e nos lucros. Os sócios podem convencionar, por exemplo, que os lucros serão distribuídos de acordo com a receita proporcionada pelos negócios viabilizados por cada um independentemente da contribuição para o capital social. Essa desproporção é incomum no comércio em geral, mas frequente no setor de prestação de serviços profissionais.”
- Percebe-se, portanto, que a doação e a distribuição desproporcional de lucros são institutos de Direito Privado que não se confundem. Com efeito, enquanto a doação trata de transferência patrimonial por liberalidade, a distribuição de lucros se insere em um âmbito negocial, na relação entre sócios e sociedade, e eventual desproporcionalidade na distribuição de lucros também tem razão de ser, não no animus donandi, como acontece na doação, mas sim em um contexto negocial, a exemplo da distribuição por negócios prospectados por cada sócio.
- Sendo assim, o instituto da distribuição desproporcional de lucros de sociedades limitadas (reguladas pelo Código Civil, sem que tenham estipulado em contrato social a regência supletiva das normas da sociedade anônima, nos termos do parágrafo único do artigo 1.053), conforme previsão no artigo 1.007 do Código Civil, ao se inserir em um contexto empresarial, não reveste necessariamente a característica de liberalidade, motivo pelo qual, sendo usado de modo lícito, e com o devido propósito negocial, não se confunde com doação e, dessa feita, não há que se falar em incidência de ITCMD na regular distribuição desproporcional de lucros – seja tal distribuição definida em acordo prévio, anterior às distribuições futuras e devidamente registrada em contrato social, seja a definição dos percentuais realizada antes de cada distribuição de lucros, com previsão no contrato social.
- Ainda, cumpre registrar que a legislação civil não trouxe regras formais acerca do momento de deliberação acerca da distribuição desproporcional de lucros das sociedade limitadas, e não serão as normas tributárias que irão dispor sobre. Além disso, o momento da deliberação não guarda necessária relação sobre a liberalidade do ato. E, uma vez existindo liberalidade, distribuição desproporcional de lucros, propriamente dita, não será.
- Ou seja, não sendo a liberalidade característica própria do instituto de distribuição desproporcional de lucros, se, na análise do caso concreto, ela ficar evidenciada, isso é, havendo o animus donandi na transferência patrimonial, não se tratará, então, de distribuição desproporcional de lucros, independentemente das formalidades estabelecidas entre as partes. Nesse contexto, reitera-se que compete ao fisco desconsiderar os atos e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária (parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional).
- A presente resposta substitui a anterior, Protocolo CT nº 398/2012, produzindo efeitos na forma prevista no parágrafo único do artigo 521 do RICMS/2000.
A única ressalva que encontramos na resposta à consulta acima transcrita é a menção ao “propósito negocial”, constante no item 6 da resposta, mas, isso é assunto para outro artigo.
Portanto, fique atento: se o seu estado está cobrando ITCMD sobre a distribuição desproporcional dos lucros, você tem fortes argumentos para afastar essa exigência!
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