Covid-19 e as incorporações imobiliárias: qual valor deve ser devolvido em caso de desistência do comprador?
A pandemia do coronavírus apresenta reflexos importantes nos contratos imobiliários. Apesar da matéria ser regulada por lei, já há aqueles que desejam excepcionar sua aplicação em tempos de pandemia
- O que é uma incorporação imobiliária?
Incorporação imobiliária é a atividade desenvolvida por um incorporador (pessoa física ou jurídica) por meio da qual ele planeja a construção de um condomínio com unidades autônomas (ex: um prédio com vários apartamentos) e, antes mesmo de iniciar a edificação, já aliena as unidades para os interessados e, com os recursos obtidos, vai construindo o projeto.
Nas palavras do Min. Luis Felipe Salomão, “a expressão incorporação imobiliária designa a iniciativa do empreendedor que, com a venda antecipada das unidades autônomas, obtém capital necessário para a construção de edifício de apartamentos, sob o regime condominial” (REsp 1.537.012-RJ).
Nos termos do parágrafo único do art. 28 da Lei 4.591/64 a incorporação imobiliária é a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas.
Assim, por meio da incorporação imobiliária, é realizada a venda antecipada de unidades imobiliárias com o objetivo de obter recursos para a construção e entrega, no futuro, das unidades habitacionais.
- O comprador/adquirente pode desistir, sem motivo, da compra?
Em tese, o comprador não pode, se motivos, desistir da compra, conforme se verifica do art. 32, § 2º da Lei 4.591/64, com o seguinte teor: Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra.
Apesar disso, na prática, inúmeros desses contratos são desfeitos.
- Em caso de desistência da compra, após o pagamento de algumas parcelas, a construtora poderá reter parte desses pagamentos?
Sim. O Superior Tribunal de Justiça definiu que a resolução do contrato de promessa de compra e venda de imóvel por culpa (ou por pedido imotivado) do consumidor gera o direito de retenção, pelo fornecedor, de parte do valor pago. Nesse sentido, há vários precedentes dizendo que é justo e razoável que o vendedor retenha parte das prestações pagas pelo consumidor como forma de indenizá-lo pelos prejuízos suportados, especialmente as despesas administrativas realizadas com a divulgação, comercialização e corretagem, além do pagamento de tributos e taxas incidentes sobre o imóvel, e a eventual utilização do bem pelo comprador.
A Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018) previu quais valores podem ser retidos pelo incorporador em caso de desistência por parte do consumidor/adquirente:
– a integralidade da comissão de corretagem;
– 25% da quantia paga pelo adquirente, caso a incorporação não esteja submetida ao regime de patrimônio de afetação;
– 50% da quantia paga pelo adquirente, caso a incorporação esteja submetida ao regime de patrimônio de afetação.
Caso a desistência se dê após a entrega da unidade imobiliária, a outros valores adicionais que podem cobrados dos compradores/adquirentes/consumidores.
- Quais os prazos para o incorporador devolver parte dos valores aos compradores/adquirentes?
– Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação: o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente no prazo máximo de 30 dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente;
– Caso a incorporação não esteja submetida ao regime do patrimônio de afetação: o pagamento será realizado em parcela única, após o prazo de 180 dias, contado da data do desfazimento do contrato.
Anteriormente à Lei do Distrato, o STJ tinha entendimento sumulado (súmula 543) de que a devolução deveria ser imediata.
- Possibilidade de as partes estipularem regras diversas
Em caso de distrato, ou seja, de extinção do contato de comum acordo entre as partes, estas podem prever regras diferentes daquelas previstas na lei.
Nesse sentido é o art. 67-A da Lei 4.591/65, com a seguinte redação: Poderão as partes, em comum acordo, por meio de instrumento específico de distrato, definir condições diferenciadas das previstas nesta Lei.
- A pandemia justifica a desistência de compra por parte do adquirente com a devolução total dos valores já pagos?
A lei prevê uma possibilidade de o comprador desistir do negócio sem retenção de qualquer valor por parte da incorporadora. Isso poderá ocorrer caso o comprador-retirante encontre adquirente substituto que o sub-rogue nos direitos e obrigações originalmente assumidos, desde que haja a devida anuência do incorporador e a aprovação dos cadastros e da capacidade financeira e econômica do comprador substituto (art. 67-A, § 9º).
Porém, nos tempos atuais de pandemia, é pouco provável que o comprador-desistente consiga encontrar adquirente substituto.
Em virtude disso, é possível, para não dizer provável, que compradores-desistentes, invocando a pandemia, recorram ao Poder Judiciário para que possam desistir de tais compras, sem ter que arcar com estes custos.
Esse é um argumento válido?
Esse é assunto bastante delicado, e que certamente ensejará inúmeros debates, seja na doutrina, seja em juízo.
Como já dito por nós em outras oportunidades, a pandemia não pode ser um “super-trunfo” para que os contratantes deixem de cumprir os contratos. Como se sabe, os contratos são feitos para serem cumpridos. É necessário que a repercussão do coronavírus sob a esfera econômica da parte seja devidamente demonstrada e comprovada pela parte.
É preciso, também, mencionar que a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) determina que a revisão judicial dos contratos será algo excepcional. Embora no caso de contratos imobiliários uma das partes, o adquirente, seja consumidor, é preciso frear esse paternalismo contratual que busca, a todo tempo, relativizar a força obrigatória dos contratos, tomando os contratantes, no momento da contratação, como verdadeiros ignorantes.
Por outro lado, os estudos de Análise Econômica do Direito demonstram que as decisões judiciais geram efeitos no comportamento das partes, para o bem e para o mal. O comportamento dos contratantes reflete o comportamento dominante do meio social em que inserido. Logo, se aquele comprador que estava disposto a arcar com as retenções previstas em lei para desistir do negócio verifica que seus pares estão se “livrando” dessas penas ao recorrer ao Judiciário, visando maximizar sua utilidade, certamente irá alterar seu comportamento, e também irá requerer a exclusão de tais penas para o seu caso.
A consequência disso para o sistema como um todo pode ser nefasta. Portanto, deve-se afastar comportamentos oportunistas daqueles que, mediante a invocação da pandemia, pretendem se furtar de compromissos anteriormente firmados. A alegação de “caso fortuito” e “força maior” não pode ter eficácia liberatória geral, sem se verificar seus efeitos concretos no caso.
É dizer, entendemos que não pode o contratante querer a devolução da totalidade dos valores já pagos sob a “simples” alegação de “coronavírus”.
Portanto, advogamos pela necessidade de os contratantes, valendo-se do permissivo da própria lei, negociem os termos da resolução do contrato, por meio de ajustes cooperativos que tendem a ser mais eficazes e geram maior satisfação às partes.
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